Um novo governo, os mesmos desafios?
Bernardo Estellita Lins (Doutor em economia, na Universidade de Brasília (UnB). Consultor legislativo da Câmara dos Deputados na área XIV (ciência e tecnologia, comunicação e informática).
“Esta terra, Senhor, (...) será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares (...) Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.”
(Trecho da carta de Pero Vaz de Caminha)
A mudança dos anos marca o andar de nossas vidas e do nosso mundo, lembrando-nos, como pontuou uma vez Júlio Cortázar, que ao final do caminho de cada um está a morte. É o fim inevitável dos indivíduos e das sociedades, que serão substituídos por novos atores, num ciclo perpétuo de renovação. A contagem do tempo serve, por outro lado, para sinalizar momentos de decisão e de transformação que, mais adiante, levarão as novas gerações a contar e compreender sua história.
O ano de 2011 poderá vir a ser uma dessas inflexões, um ano a ser visto no futuro como uma referência. O início desse ano será lembrado como uma ruptura da nossa história recente em vários sentidos. É um ano de mudança de governo, pela primeira vez, em nossa história republicana, assumido por uma mulher.
É também uma rara oportunidade em que uma tendência política conquista um terceiro e sucessivo mandato pelas urnas, um sinal de aplauso da direção que o governo vem tomando. Pouco importa que parte dessa administração tenha se formado e se consolidado sob outra orientação ideológica. Os instrumentos liberais herdados de um mandato foram ajustados à retórica do outro e são vistos pela opinião pública, atualmente, como um todo relativamente coeso e submetido a uma supervisão única.
Este ano ficará marcado também pela revisão de alguns dos valores mais tradicionais de nossa sociedade. Logo em seu início, dois paradigmas estão sendo rompidos com a aprovação, na Câmara dos Deputados de um novo código florestal, mais elástico em sua aplicação e, no Supremo Tribunal Federal, do reconhecimento das relações civis entre pessoas do mesmo sexo. Outras mudanças poderão vir, pressionadas por interesses econômicos e por avanços sociais.
Debates sobre o sistema político, os controles impostos ao setor público e as mudanças em vários setores da economia deverão avançar no segundo semestre de 2011, trazendo novas perspectivas para problemas antigos. Para alegria de uns e perplexidade de outros tantos.
O ano que se inicia sinaliza, enfim, uma ocasião em que sonhos de outrora começam a ter um aroma de realidade. A exploração do pré-sal coloca o Brasil diante da perspectiva de autossuficiência energética e de ativa participação no mercado dos grandes produtores de petróleo. A abundância de água deixa-nos confortáveis no momento em que esse recurso começa a escassear em escala global, efeito do crescimento da população mundial, do manejo equivocado de mananciais e das mudanças climáticas. O avanço econômico e o envelhecimento da população colocam-nos diante da perspectiva de eliminar a pobreza e de integrar toda a população ao mercado formal. E, no entanto, esses horizontes nos trazem imensos desafios.
Desafios que, paradoxalmente, não são novos. Apenas tomam, diante dessa configuração de futuro, uma dimensão e uma urgência inesperadas. O Brasil convive, hoje, com o peso de um sistema político que perpetua o clientelismo, a fragilidade dos partidos e o desequilíbrio na representação política dos estados.
Convive com um sistema tributário que sobrecarrega consumidores e empresários e coloca o governo numa falsa zona de conforto, no qual se vê tentado a gastar mais, arrecadando mais. Convive com uma justiça bizantina, morosa, secundada por uma segurança pública e uma estrutura carcerária sucateadas,
que estimulam a criminalidade, a corrupção e a violência. A lista de ineficiências e descalabros é interminável: transportes ruins, educação de má qualidade, hospitais pavorosos, endemias, enchentes e deslizamentos provocando tragédias espantosas, sistema financeiro asfixiante, desmatamento, poluição, sonegação, captura do Estado em todos os níveis e assim por em diante.
E, apesar de tudo isto, o país é dinâmico, cresce, melhora e proporciona esperanças palpáveis à população, de um futuro mais justo e confortável, no qual a superação de alguns desses entraves poderá ser empreendida com sucesso. Será o efeito natural de um inescapável crescimento econômico calcado na exploração de imensas riquezas que, ano após ano, ciclo após ciclo, não deixam de nos surpreender? Ou será o curioso paradoxo de uma nação que se vê grandiosa e que, enfeitiçada por essa miragem, constrói de fato sua própria grandeza? Na irônica comparação oferecida por Chico Buarque e Ruy Guerra, estaríamos fadados a cumprir a utopia de nos tornarmos um imenso Portugal.
Este número dos Cadernos ASLEGIS traz contribuições que discutem, precisamente, alguns desses desafios. A diversidade de temas é característica de uma sociedade vasta e complexa, como a que os brasileiros lograram consolidar nas últimas décadas. São exames detidos de questões que vão da política tributária à exploração de petróleo do pré-sal; das eleições à exploração espacial; e da educação infantil às recentes tragédias provocadas por enchentes e deslizamentos pelo país afora.
Neles constatamos a esterilidade de certas tentativas de reforma que ganharam a mídia, mas que oferecem poucas chances de evoluir, e nos confrontamos com poucas e reais possibilidades de mudanças, nas atuais condições políticas. Enriquecedora, nesse contexto, a palavra de um autóctone, o líder indígena Álvaro Tukano, que concordou com a reprodução de seu depoimento neste volume na seção “Sala de Visitas”. Trata-se de uma declaração colhida durante uma palestra, no ciclo Consultoria de Portas Abertas, realizado em fevereiro de 2011.
Suas palavras, declarações sóbrias, rematam a variedade de problemas que cada brasileiro enfrenta e os contrastes entre suas expectativas, como pessoa e como membro de uma comunidade, e as opções de políticas públicas que lhe são postas.
Aproveitamos para incluir neste número algumas das apresentações de consultores legislativos no referido ciclo. São textos de caráter didático e orientação eminentemente prática, sobre temas de interesse da comunidade legislativa. Esperamos, em números futuros, divulgar novos textos apresentados nesse evento.
O volume encerra-se com reflexões sobre temas livres, cuja leitura pareceunos fascinante. Curiosamente, são textos que estabelecem com o assunto principal deste volume interessante diálogo. Os dois primeiros artigos propiciam uma visão comparada com realidades de outros países, diante das quais os méritos e as fraquezas de nossos sistemas e nossa política ganham evidência.
Os últimos artigos sugerem dimensões comportamentais e éticas a partir de abordagens instigantes, desafiando nossa reflexão a respeito dos valores que nos orientam na atualidade. Olhando para o ano que se inicia, os autores que aqui ofereceram seus textos nos trazem uma contraditória combinação de entusiasmo e desencanto com o futuro do país.
Filtrados pelas cores de suas reflexões, os problemas brasileiros revelam matizes inesperados, em que experiências e valores conflitantes combinam-se de modo surpreendente. Resultado talvez da complexa miscigenação racial e cultural de nossas raízes e dos desafios que já enfrentamos para extrair deste
território belo e inóspito algumas das muitas riquezas que o país pode oferecer.
As observações desarmadas de Pero Vaz de Caminha, há mais de cinco séculos, continuam a reverberar na alma brasileira, incitando-nos a perpetuar o espírito bandeirante e a nos lançarmos na destemida, e não raro irresponsável, aventura de expandir nossas fronteiras. Estes na ocupação de terras, aqueles na criação de conhecimento, acolá, ainda, no domínio de mercados, na exploração do mar ou em outras emocionantes buscas.
Afinal, as riquezas naturais e os desafios da geografia estão postos a qualquer um. É do espírito do povo que nascem, de fato, as oportunidades, a riqueza e a projeção política da nação. Ou, no extremo oposto, é dali que se semeia seu trágico fracasso. Estamos em nossas próprias mãos.
Boa leitura.
ARTIGOS & ENSAIOS
2 - Alguns comentários sobre a Reforma Tributária
Murilo Rodrigues da Cunha Soares
3 - Em defesa da execução administrativa da dívida ativa
Cristiano Viveiros de Carvalho
4 - A correção do imposto de renda
Roberto Boccaccio Piscitelli
5 - Orçamento impositivo, contingenciamento e transparência
Vander Gontijo
6 - A cessão onerosa, o regime de partilha e o desafio do próximo governo quanto à Libra e outras áreas do Pré-Sal
Paulo César Ribeiro Lima
7 - Planejamento e Plano Nacional de Educação
Paulo Sena
8 - Educação infantil: por que mais creches?
Ana Valeska Amaral Gomes
9 - Águas que caem, pedras que rolam
José de Sena Pereira Júnior, Ilidia da Ascenção Garrido Martins Juras
e Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo
10 - Exploração Espacial: política pública ou política do “ao Deus dará”?
Elizabeth Machado Veloso
11 - Como ler resultados eleitorais II
Márcio Nuno Rabat
12 - Uma lição de brasilidade e de realidade
Álvaro Fernandes Sampaio (Álvaro Tukano)
SEÇÃO ESPECIAL: CICLO “CONSULTORIA DE PORTAS ABERTAS”
13 - Fundo de Participação dos Municípios: evolução e obstáculos para sua modificação
Aurélio Guimarães Cruvinel e Palos
14 - Política fundiária no ordenamento jurídico agrário diagnóstico, perspectivas e proposta de mudanças
Luiz Almeida Miranda
15 - Breve tutorial sobre tramitação dos processos de radiodifusão na Câmara dos Deputados
José de Sousa Paz Filho
TEMA LIVRE
16 - Análise comparativa do número de representantes nas câmaras baixas do Brasil, Espanha, Estados Unidos e França
Claudionor Rocha
17 - Biocombustíveis na Argentina: políticas públicas e evolução recente
Rodrigo H. C. Dolabella
18 - É possível prever o resultado de eleições analisando a face dos políticos?
Sérgio Senna Pires
19 - A ausência da filosofia e da teologia no cotidiano
Luiz Henrique Cascelli de Azevedo
Notas – Acontecimentos – participações em eventos
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